Todos sabem que me posicionei contra o atual projeto de transposição do Rio São Francisco. Defendi e defendo as propostas da ANA (Agência Nacional das Águas) e da ASA (Articulação do Semi-Árido) para o nosso semi-árido brasileiro. Como diz o grande poeta Elomar, sou daqueles que pelo meu torrão, "se um dia lhe fizerem guerra seu filho vem morrer por ti". Considero que o governo optou pelo projeto das grandes obras da grande visibilidade, do impressionismo. A política tem disso. Além do que, há uma confluência de forças sociais muito fortes em defesa do projeto. Desde grandes conglomerados econômicos, de olho nas obras faraônicas e nos negócios de dela advirão, até pessoas e organizações bem intencionadas que crêem firmemente que só há essa solução, passando por uma gama de políticos dos mais desclassificados, com demagogia que dói nos ouvidos, tirando suas “casquinhas” eleitorais.
Sobre o semi-árido
O semi-árido brasileiro é uma grande área que abrange oito estados do Nordeste, o norte de Minas e hoje já se expande pelo norte do Espírito Santo, chegando a praticamente um milhão de quilômetros quadrados, onde reside cerca de 36 milhões de pessoas. É a área do Brasil onde ainda perdura uma população rural equiparada à urbana e onde predomina uma população urbana que vive de atividades rurais, pois a grande maioria dos municípios do nosso semi-árido são municípios minúsculos, embora se tenha alguns de populações entre 50 e 100 mil habitantes. É um ecossistema com características próprias. Digo isso pra alertar algumas pessoas que confundem bioma e ecossistema. O bioma Caatinga, formado pela flora e fauna, é o bioma predominante no ecossistema do semi-árido que assim se denomina pois sua média de precipitação pluviométrica é entre 300 mm e 800 mm. Na classificação de climas no mundo, quem recebe uma precipitação média anual abaixo de 300 mm é tido como de clima árido, acima de 800 mm e abaixo de 1200 mm semi-úmido e, acima de 1200 mm, úmido.
Ao todo ano, em média, pelos cálculos da ANA, precipita e passa pelo semi-árido anualmente aproximadamente 750 bilhões de metros cúbicos de água - ou, poderíamos dizer, cerca de dois mil açudes de Boqueirão cheios. Desse total de água que banham o semi-árido, temos estrutura para armazenar cerca de 36 bilhões de metros cúbicos. Mesmo assim esses 36 bilhões de metros cúbicos armazenados estão inacessíveis para grande parte da população.
O maior problema no armazenamento de água no semi-árido é protegê-la da evapotranspiração e garantir sua qualidade. A evapotranspiração é a perda pela evaporação, ou seja, o sol bebendo e, pelo processo de respiração das plantas, a transpiração. O acumulado de água nos quatro meses que descem dos céus sobe para lá, nos oito restantes para completarem o ciclo natural. Por outro lado, os nossos solos são na maioria ricos em sais, podendo facilmente transmitir os sais para as superfícies e com a evaporação das águas os sais ficarem em excesso na superfície, prejudicando atividades produtivas. Ainda há o problema do nosso subsolo, a grande maioria composto por rochas cristalina, impedindo a formação de grandes aqüíferos. Ficando apenas as falhas das formações rochosas para o acumulo da água que consegue penetrar, há outro problema, pois o solo compacto e o regime pluviométrico de chuvas rápidas e fortes dificulta a penetração de água para o subsolo.
Sobre o projeto de transposição
A transposição do São Francisco é um projeto antigo, do século XIX, pensado pelo corpo de engenheiro do Imperador Pedro II. De lá pra cá, a engenharia evoluiu bastante e novas técnicas e tecnologias de transporte de água a longa distância se aperfeiçoaram - como também nesse período se modificou bastante a visão sobre semi-árido.
O projeto propõe vazar o rio em dois canais e transportar 26 metros cúbicos de água por segundo, dos quais cerca de 70% seria destinado ao eixo norte e 30% ao eixo leste. No eixo norte, nos primeiro 400 quilômetros serão feitos canais de cimento de 25 metros de largura e dois de profundidade; no eixo leste, serão 200 km da mesma engenharia.
Para transportar o líquido por canais abertos terão que ser feitas seis barragens de captação, de onde a água será bombeada para novos canais até chegar ao leito dos rios Paraíba, no eixo leste, 304 metros acima da barragem original de Itaparica e com mais ou menos a mesma altura no eixo norte. A partir daí, uma série de canais e leitos de rios temporários levarão a água a seu destino; 70% da água deve ser destinada a projetos de irrigação, 26% para abastecimento urbano e 4% para populações rurais do semi-árido. O objetivo divulgado pelo governo é beneficiar 12 milhões de nordestinos.
Para se defender das acusações de ambientalistas os defensores da transposição nesse projeto, o governo apresentou um projeto paralelo de revitalização do São Francisco. E submeteu o projeto de transposição ao IBAMA para análise dos impactos ambientais.
Sobre a revitalização, o projeto não prevê uma série de exigências dos ambientalistas, como também nem discute a revitalização de nenhum rio do semi-árido. Sobre o relatório de impacto ambiental do IBAMA, são apontados onze impactos negativos e mais de cem ações que devem ser tomadas no sentido de reduzir os impactos a que se refere. Além disso, o IBAMA não analisou o impacto ambiental na foz do São Francisco.
Técnicos da ANA, especialistas em recursos hídricos, calculam que será em torno de 55% a evaporação dessas águas nos canais de cimento, não tendo como precisar esse processo nos leitos dos rios, pois é preciso ver em que condições essas águas vão passar por esses rios. Isto significa que, de cada 100 litros de água que sairá do São Francisco, cerca de 45 chegará à nascente do Paraíba, por exemplo.
Outro ponto é que a obra será realizada por empreiteiras, cabendo ao Exército preparar apenas as bacias de captação, avaliadas em 6,5 bilhões de dólares e com uma previsão de 12 anos para sua conclusão.
O mais grave que se ocorre é a ilusão que os defensores do projeto de transposição criaram nas camadas populares, algo que temo que se volte contra os democráticos do governo. Alguns falam em redenção do sertão, que será o fim dos carros pipas, da lata d'água na cabeça, da falta de água pra os animais. Isso é tudo mentira deslavada. Sacanagem pura, das mais cruéis.
Quando dava uma entrevista a uma rádio, o repórter narrou ter visto uma vaca morrer de fome em Olivedos e disse que esperava que, com a transposição, iria acabar a seca naquele município e não veria cenas daquela. Nem o mais cínico político nordestino pode ter o descaramento de dizer que o atual projeto de transposição acabará a sede e a fome dos animais na região. Penso que se o repórter, iludido, conhecesse a proposta de convivência com o semi-árido aderiria facilmente ao projeto.
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